Para
quem tem medo, e a nada se atreve, tudo é ousado e perigoso. É o medo
que esteriliza nossos abraços e cancela nossos afetos; que proíbe nossos
beijos e nos coloca sempre do lado de cá do muro. Esse medo que se
enraíza no coração do homem impede-o de ver o mundo que se descortina
para além do muro, como se o novo fosse sempre uma cilada, e o
desconhecido tivesse sempre uma armadilha a ameaçar nossa ilusão de
segurança e certeza.
O medo, já
dizia Mira Y Lopes, é o grande gigante da alma, é a mais forte e mais
atávica das nossas emoções. Somos educados para o medo, para o não-ousar
e, no entanto, os grandes saltos que demos, no tempo e no espaço, na
ciência e na arte, na vida e no amor, foram transgressões, e somente a
coragem lúdica pode trazer o novo, e a paisagem vasta que se descortina
além dos muros que erguemos dentro e fora de nós mesmos.
E se Cristo
não tivesse ousado saber-se o Messias Prometido? E se Galileu Galilei
tivesse se acovardado, diante das evidências que hoje aceitamos
naturalmente? E se Freud tivesse se acovardado diante das profundezas do
inconsciente? E se Picasso não tivesse se atrevido a distorcer as
formas e a olhar como quem tivesse mil olhos? "A mente apavora o que não
é mesmo velho", canta o poeta, expressando o choque do novo, o
estranhamento do desconhecido.
Há um tempo
em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do
corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos
lugares. É o tempo da travessia: e se não ousarmos fazê-la, teremos
ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.